Oitenta e sete anos nos separam agora da morte do criador do partido bolchevique, fundador do Estado soviético, do homem, na simples definição de Eric Hobsbawm, "com maior impacto individual na história do século XX" (o que equivaleria a dizer, do ponto de vista puramente quantitativo, "na história do gênero humano"). Poderíamos acrescentar que, também, não existe em toda a história abismo maior entre a importância do personagem e a reflexão, de qualquer natureza, acerca da sua vida e obra.
"A origem de todo o mal"
Se, durante décadas, o panorama foi dominado por uma hagiografia "leninista" (na verdade, stalinista), em que homem era apresentado como uma espécie de predestinado, sem contradições, situado por cima da história concreta de seu tempo e de si mesmo, desde o fim da URSS (e ainda antes) o lugar foi ocupado por uma historiografia, e até uma "filosofia", que, sem trazer nenhuma contribuição, se apresenta como uma espécie de "fundamentalismo anti-leninista": ver, por exemplo, a obra, "baseada nos arquivos secretos [do PCUS]", do historiador Dimitri Volkogonov, onde afirma que "Lênin, o semideus venerado durante 62 anos, inclusive por mim, aparece não como o guia magnânimo da lenda mas um tirano cínico, disposto a tudo para tomar e conservar o poder... Lênin é o verdadeiro pai do terror vermelho, e não Stálin".
Lênin teria sido, desde a sua primeira juventude, o portador de um projeto diabólico, o "partido leninista", que visava tomar o poder (para a intelectualidade? para o despotismo asiático "modernizado"?) e submeter à sociedade ao pior totalitarismo. Se um jovem russo de finais do século XIX tivesse sido capaz de prever a guerra russo-japonesa, a revolução de 1905, a I Guerra Mundial, a passagem da social-democracia internacional para o campo do belicismo imperialista, a revolução de fevereiro de 1917 (isto é, as circunstâncias históricas que possibilitaram a vitória do bolchevismo) mais do que um demônio, teria sido um oráculo.
A domesticação impossível
Caberia supor que o fim da URSS, ou o desprestígio universal do stalinismo, trariam uma visão mais "objetiva", mas isso não aconteceu. Já houve quem transformasse Marx em um precursor do Estado de bem-estar, ou em um profeta da "globalização"; Trotsky, num campeão da democracia contra a ditadura staliniana; Gramsci, num teórico das transformações pacíficas através da conquista gradual da hegemonia cultural; Che Guevara num ícone da contra-cultura consumível e rentável: com Lênin, as operações de "resgate" parecem impossíveis, não há candidatos para a tarefa. Nada haveria de "humano" (capitalistamente humano) nele, não há "espectros" à la Derrida para serem invocados contra os excessos do (neo)liberalismo, apenas um cadáver embalsamado ainda religiosamente exposto à visitação pública. Lênin, a ameaça absoluta, a "origem do mal" (nas palavras de um panfletário pseudo-historiador francês). Lênin, o teórico do capitalismo agonizante, do imperialismo portador de guerras e revoluções, o político do partido, da ditadura do proletariado: sem essas premissas teóricas, sem esses instrumentos políticos, não há saída, todo o resto é ilusão; Lênin, a anti-ilusão personificada.
Ao longo do tempo, a história do bolchevismo foi feita e refeita, ao calor das vicissitudes históricas: ela exemplifica, melhor do que nenhuma outra, a inexistência de uma história "imparcial", portadora de verdades absolutas ou conclusões definitivas. O desenvolvimento da história é o da constante re-interpretação do passado à luz da mudança do presente. Norberto Bobbio considerou o leninismo como "a interpretação teórico-prática do marxismo, em clave revolucionária, elaborada por Lênin num e para um país atrasado industrialmente, como a Rússia, onde os camponeses representavam a enorme maioria da população", atribuindo à "teoria do partido" de Lênin "claras raízes populistas" e situando-a simultaneamente como uma variante "esquerdista" do revisionismo bernsteiniano da virada do século.
Lenin e "Que Fazer?"
Foi o próprio Lênin quem se encarregou, muito cedo, de relativizar os princípios políticos organizativos contidos no Que Fazer? (de 1902) como sendo os de um "novo tipo" de organização (ou partido). Por outro lado, o termo "bolchevique" teve, no início, apenas um significado técnico: maioria do II Congresso do POSDR, de 1903. Escrevendo em 1907 um prefácio à reedição de seus trabalhos, Lênin criticou os exegetas do Que Fazer?, que "separam completamente esse trabalho de seu contexto em uma situação histórica definida - um período definido e há muito tempo ultrapassado pelo desenvolvimento do partido", precisando que "nenhuma outra organização senão aquela liderada pela Iskra podia, nas circunstâncias históricas da Rússia de 1900-1905, ter criado um partido operário social-democrata tal como aquele que foi criado... Que Fazer? é um resumo da tática e da política de organização do grupo da Iskra em 1901 e 1902. Nada mais que um resumo, nada mais e nada menos".
Por outro lado, essa "tática" e essa "política" não se consideravam originais, mas uma aplicação, nas condições russas (severa repressão, ausência de liberdades democráticas e de democracia política), dos princípios organizativos existentes na II Internacional. Não havia fetiche estatutário: o próprio Lênin aceitou, no congresso de reunificação (bolcheviques + mencheviques) de 1906, a redação menchevique do famoso Artigo 1º dos estatutos.
Rosa Luxemburgo
Em 1904, Rosa Luxemburgo levantou-se contra o "ultra-centralismo" leninista no seu texto Questões de Organização da Social-Democracia Russa, afirmando: "Não é partindo da disciplina nele inculcada pelo Estado capitalista, com a mera transferência da batuta da mão da burguesia para a de um comitê central social-democrata, mas pela quebra desse espírito de disciplina servil, que o proletariado pode ser educado para a nova disciplina, a auto-disciplina voluntária da social-democracia". Acrescentando que "o ultracentralismo preconizado por Lênin parece-nos, em toda a sua essência, ser portador, não de um espírito positivo e criador, mas do espírito estéril do guarda noturno. Sua preocupação consiste, sobretudo, em controlar a atividade partidária e não em fecundá-la, em restringir o movimento e não em desenvolvê-lo, em importuná-lo e não em unificá-lo".
A resposta de Lênin não é compreendida até hoje, pela sua espantosa simplicidade: as críticas de Rosa são polidamente respondidas, uma a uma, afirmando que "o que o artigo de Rosa Luxemburgo, publicado em Die Neue Zeit, dá a conhecer ao leitor, não é meu livro, mas outra coisa distinta", e dizendo, em essência, que "o que defendo ao longo de todo o livro, desde a primeira página até a última, são os princípios elementares de qualquer organização de partido que se possa imaginar; (não) um sistema de organização contra qualquer outro". O traço do caráter de Lênin mais lembrado pelos seus contemporâneos era o de sempre achar as respostas mais simples para todos os problemas.
A luta contra os burocratas do Partido
Não foi contra as idéias do Que Fazer? que, no Congresso de Londres de 1905 (bolchevique), Lênin empreendeu a batalha pelo recrutamento de operários que não eram - e não poderiam ser- "revolucionários profissionais", mas apenas militantes operários revolucionários: Lênin mal conseguiu se conter ouvindo dizer que não havia operários capazes de formar parte dos comitês, e propôs incluir obrigatoriamente nos comitês uma maioria de operários. A proposição de Lênin foi derrotada no Congresso.
Ele mudou, não uma, mas várias vezes a sua apreciação acerca da natureza da revolução russa, evoluindo da concepção de uma revolução burguesa para "outra coisa", como diz de modo irônico Moshe Lewin: "Desde a sua obra escrita no exílio siberiano, Lênin tinha a tendência de ver capitalismo atrás de cada carreta russa. Mas a revolução de 1905 o leva a matizar suas idéias: o capitalismo estava ainda fracamente desenvolvido, as forças liberais eram embrionárias e tímidas".
O bolchevismo em 1917
O partido que tomou o poder em outubro de 1917 era a prolongação do partido nascido da fração de 1903. Era, no entanto, completamente distinto. Em alguns meses, recrutara amplamente entre as jovens gerações de operários, de camponeses e de soldados: a organização clandestina que contava em janeiro, quando muito, 25.000 membros bolcheviques, contava com quase 80.000 quando da conferência de abril e 200.000 no VI Congresso, em agosto: os "velhos bolcheviques" eram uma minoria pouco superior a 10%. As adesões não foram todas individuais, englobaram grupos operários não definidos em relação às frações e querelas anteriores à I Guerra Mundial. Para Trotsky, que aderiu ao bolchevismo só em 1917: "Se se entende por nação não os privilegiados, mas a maioria do povo, isto é, os operários e os camponeses, então o bolchevismo transformou-se no decorrer do ano de 1917 no partido russo verdadeiramente nacional".
Leon Trotsky
O próprio papel de Lênin dentro do bolchevismo deve ser visto sob esse ângulo. Em vida, Lênin não foi o "chefe infalível", mas o primus inter pares, tendo sido freqüentemente posto em minoria nos debates. Na lembrança de Trotsky, "(Lênin) não era uma máquina de calcular que não cometia erros. Cometia menos do que os outros na mesma situação. Mas quando os fazia, seus erros eram enormes, à escala do plano colossal de seu trabalho". O endeusamento de Lênin, imediatamente após a sua morte, foi a proclamação da virada política em direção da burocratização. O balanço da primeira etapa da revolução russa deixou claro que o bolchevismo passou pela prova mais difícil que algum partido político tivera que suportar, superar a maior guerra internacional já acontecida, uma guerra civil e uma epidemia de fome devastadora.
A burocratização do Partido
É verdade que também se desenvolveram os elementos que possibilitarão, a partir de 1922 a burocratização do Estado soviético. O bolchevismo não se identifica só com essas contradições: ele só poderia superar os obstáculos através da própria história. Apontar, como descoberta histórica, que no bolchevismo pré-stalinista existiam alguns dos elementos da posterior ditadura burocrática (a começar pelo próprio Stálin), os elementos da sua degeneração, equivale a dizer que o bolchevismo, como todo fenômeno histórico e humano, era contraditório e permeável ao seu meio político-social. Mas o que era aquilo que Rosa Luxemburgo chamou, elogiosamente, "o essencial e duradouro, o que permanece, da política bolchevique"?
Quando a NEP (política econômica baseada na admissão parcial de mecanismos de mercado) seja adotada, em 1921, Lênin dirá que "é muito tarde", e não se ocultará o erro cometido: "Em parte como conseqüência dos problemas militares que nos afetaram e da desesperada situação em que se encontrava a república cometemos o erro de querer proceder diretamente a uma forma de produção e distribuição comunista. Uma brevíssima experiência nos convenceu deste erro, que está em contradição com tudo o que havíamos escrito antes sobre a passagem do capitalismo ao socialismo". Insistirá em que não havia, em Rússia, um "Estado Operário" sem mais, mas um "Estado Operário, em um país de enorme maioria camponesa, com deformações burocráticas".
No final da carreira, e da vida, dirá que a revolução russa fora "semi-vitoriosa e semi-derrotada", por não ter conseguido ser o ponto de partida da revolução internacional, e sem ocultar as conseqüências internas do fato: "Chamamos ‘nosso’ um aparelho (de Estado) que permanece estranho a nós, um caos burguês e czarista (sic) que nos era impossível transformar em cinco anos, privados da ajuda de outros países, e preocupados essencialmente pela guerra e a luta contra a fome". Se Marx tinha sido o crítico das derrotas do socialismo, Lênin era o crítico das suas vitórias. E depois, a morte, antes dos 55 anos, deixando escritos que preenchem mais de 60 volumes.
O futuro?
Lênin morreu apontando a próxima batalha. O incômodo do velho mundo (burocrático ou burguês) se manifesta, até hoje, em que só consegue pensa-lo como santo ou como demônio. Não como o homem que via em cada derrota o embrião da vitória, e em cada vitória o cenário da derrota. Que o futuro faça desaparecer seu corpo da obscena exibição pública, e nos devolva, pelo pensamento e a ação, sua plena humanidade, contraditória e exemplar, dialética.
Osvaldo Coggiola é Professor Titular de História Contemporânea e chefe do Departamento de História da USP, vice-presidente do sindicato nacional de professores universitários (ANDES-SN)
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