sábado, setembro 10, 2011

Panorama sociocultural da fronteira Brasil-Uruguai[1]

Resenha de artigo
Luciano Pimentel da Silva[2]

Segundo o cálculo dos geógrafos, a fronteira Brasil-Uruguai, da foz do arroio Chuí no Oceano Atlântico até desembocadura do rio Quarai, se estende por 1300 quilômetros. Do lado brasileiro, encontram-se os municípios de Uruguaiana, Quaraí, Livramento, Dom Pedrito, Bagé, Erval, Jaguarão e Santa Vitória do Palmar. Do lado uruguaio estão os departamentos de Artigas, Rivera, Cerro Largo, Treinta y Tres e Rocha. 

Fronteira Brasil-Uruguai


É a maior fronteira povoada do Brasil, que geograficamente favoreceu a aproximação entre os dois países, avançando muito mais do que a fronteira. É o caso dos municípios como Rosário do Sul e Alegrete no Brasil e Tacuarembó e Salto no Uruguai. Toda linha fronteiriça tende a estabelecer laços muito íntimos entre os cidadãos de uma e outra banda. Os rios Quaraí e Jaguarão, que servem de linhas divisórias entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai, apresentam numerosos passos vadeáveis. Nos demais pontos, a linha divisória foi traçada ao longo de pequenos arroios, coxilhas (Livramento) ou de linhas convencionais traçadas a régua sobre o mapa (entre Aceguá e o arroio da Carpintaria).
Nestas condições o resultado final foi o surgimento de uma área de intensa interação econômica, social e cultural entre os dois povos, onde a própria literatura começa a reconhecer a presença de uma terra só.

 

Penetração brasileira no território uruguaio - Portugal amplia suas fronteiras

Ao longo dos séculos 17 e 18, portugueses e espanhóis estiveram em diversas ocasiões brigando militarmente pela guarda das possessões do Novo Continente. No território platino não foi diferente. Os espanhóis não souberam conservar sua guarda avançada que foram as missões jesuíticas, e, no território gaúcho, entregaram sua conquista do porto marítimo na cidade de Rio Grande em 1776. Assim como não conseguiram fazer respeitar a fronteira traçada pelo Tratado de Santo Idelfonso em 1777. 
Linha definida pelo Tratado de Tordesilhas, segundo vários cartógrafos

Em 1801 foram empurrados em todas as frentes, permitindo que a divisa se transferisse do Taim para o Chuí, do Piratini para o Jaguarão e da Coxilha Grande para os Cerros do Jarau.
Os capitães generais do Rio Grande do Sul fizeram doações de sesmarias na região que hoje integra o departamento de Artigas, entre os rios Quarai e Arapeí. Tal região, transitoriamente, pertenceu ao Rio Grande do Sul.
Tratado de Santo Ildefonso (1777)

A eclosão da Revolução Farroupilha determinou o deslocamento de muitas famílias brasileiras para o território uruguaio. Quando se aproximava o fim da insurreição farroupilha, eclodiu no Uruguai a chamada “guerra grande”, entre partidários de Rivera e de Oribe. O Uruguai viveu momentos de intranqüilidade pelo menos até 1851. A partir deste momento as charqueadas criaram condições para se desenvolver, o que acabou se tornando uma das principais alavancas econômica do estado sul-rio-grandense. O comércio de gado realizado entre as duas nações encontrou um escoadouro natural.
Em 1850, o governo imperial solicitou aos comandos da Fronteira um levantamento dos estancieiros brasileiros estabelecidos no Uruguai. O comandante de Jaguarão apresentou a relação de 35 fazendeiros que, no conjunto, eram proprietários de 342 léguas quadradas, somente na região adjacente à lagoa Mirim e Chuí.  O comandante de Jaguarão apresentou a relação de 154 estancieiros, estabelecidos nos atuais departamentos de Treinta y Três e Cerro largo.
O comandante da fronteira de Bagé apresentou relação de 87 fazendeiros com propriedades de 331 léguas no seu montante no departamento de Serros Blancos. Já o comandante da fronteira de Quarai e Missões apresentou relação de 238 nomes, não informando a quantidade em léguas conjuntas das propriedades.
Em 1862, segundo denúncia de um deputado oriental, os brasileiros possuíam no país perto de 4.000 léguas, quase o equivalente à metade do território do Uruguai, ou seja, cerca de 40% das terras do Uruguai pertenciam a brasileiros que moravam tanto de um lado quanto do outro lado da fronteira. A presença brasileira se tornou tão expressiva no Uruguai que em 1863, numa população de 180.000 habitantes, havia cerca de 40.000 brasileiros.
As terras que pertenciam aos estancieiros do Brasil alojados no Uruguai começaram a ficar valorizadas. Esta migração em muito se deve ao fato da introdução de muitos escravos negros em todo o norte da república, mantida até 1848, quando o país platino baniu os últimos vestígios de escravismo. Mesmo assim o contrabando continuou com a introdução de escravos.

A ação do comércio de Montevidéu sobre a fronteira brasileira
Se a penetração brasileira no Uruguai se fez através da aquisição da propriedade imóvel e do estabelecimento de fazendas de criação, a resposta uruguaia se processou através do dinamismo comercial e viário a partir do porto de Montevidéu.
Dono de um bom porto e na boca de uma bacia hidrográfica, Montevidéu se especializou desde cedo no comércio de trânsito. Por ser um país de população escassa e de reduzido mercado consumidor, era fundamental negociar com os países vizinhos.
Fronteira Brasil-Uruguai

O Uruguai se tornou um tradicional intermediário de produtos europeus para o abastecimento de argentinos, brasileiros, paraguaios e até bolivianos. O mesmo Porto de Montevidéu servia de escoadouro para as exportações do oeste e sudeste rio-grandense, do Paraguai e de algumas províncias argentinas. Até a década de vinte do século passado, os saladeiros de Quarai, Uruguaiana e Itaqui mandavam seus produtos, para o próprio Brasil, através do porto de Montevidéu.
Inicialmente, esse comércio de trânsito tinha por base a navegação do rio Uruguai. Mais adiante, a navegação seria substituída pelas estradas de ferro. O trem se desenvolveu mais rápido no Uruguai. Em 1887 a Ferro-Carril Noroeste del Uruguay foi concluído, estabelecendo a famosa linha BGS até Uruguaiana, a linha férrea uniu estas cidades fronteiriças. Somente 20 anos depois é que Uruguaiana teve sua estrada de ferro ligando a Porto Alegre.

Interação econômica
Brasil e Uruguai aprenderam muito cedo que a prática de uma economia deveria ser solidária. As barreiras fiscais jamais conseguiram disciplinar estas “negociações”. O contrabando era hostilizado brandamente pelos governos e combatidos pelas praças comerciais que ele prejudicava. Mesmo assim sobreviveu a todas as perseguições.
Sem dúvida temos aí a importância da Colônia do Sacramento, importante entreposto português fincado as margens do Rio da Prata. Por ser uma área de disputa pelos dois países ibéricos, diversos changadores e tropeiros cruzavam esta região, contribuindo em muito a existência inicial do Continente do Rio Grande, o que mais tarde seria o atual estado brasileiro do Rio Grande do Sul. 
Colônia do Sacramento (1680)


Com o advento da indústria do charque em Pelotas, os estancieiros estabelecidos no leste do Uruguai foram tentados a levar suas tropas de gado em pé para Pelotas por ser o centro consumidor mais próximo. Os focos de vigilância política contra o contrabando foram invariavelmente os portos do litoral rio-grandense – Porto Alegre e Rio grande – que em vão se esforçavam para cercear a penetração de mercadorias importadas através de Montevidéu.
O fisco nunca funcionou com deveria nesta região fronteiriça. As oscilações da relação de câmbio entre as moedas dos dois países variavam nas cidades limítrofes de acordo com a preferência dos consumidores. Conforme for mais vantajoso comprar no Uruguai ou no Brasil, a massa de consumidores se desloca pra lá ou pra cá, inclusive mobilizando legiões de subempregados ou desempregados, que se dedicam à tarefa de adquirir mercadorias no varejo e transportá-la para outro lado da linha fronteiriça.

 

Interação política

Tradicionalmente, o Rio grande do Sul foi o local de asilo para políticos em desgraça na república vizinha, assim como o Uruguai para políticos brasileiros. Muito uruguaios fugidos das lutas da independência de seu país se asilaram no Brasil. Muitos inclusive se estabeleceram em definitivo. Após a independência, Lavalleja e Rivera estiveram por um período estacionados no Rio Grande do Sul. Lavalleja inclusive tinha ligações próximas com Bento Manoel Ribeiro e Bento Gonçalves, influenciando na deflagração da Revolução Farroupilha. A semelhança da formação sócio-econômica levou a uma fácil identificação política entre brasileiros e uruguaios.
Os brasileiros radicados como estancieiros no norte do Uruguai tiveram papel decisivo nas lutas pós-independência uruguaio – movimento revolucionário de Venâncio Flores (1864); Insurreição Blanca (1871). Em contrapartida os uruguaios se fizeram presentes nas revoltas sul-riograndenses – Guerra Federalista (1893); Revolta de 1923 - apoiando os políticos oposicionistas do Rio Grande do Sul. Da insurreição brasileira de 1893, os caudilhos Gumercindo e Aparício Saraiva participaram ativamente, ambos com precedentes em insurreições uruguaias.

Na guerra civil de 1923 no Rio Grande do Sul, tomaram parte vários uruguaios, como Nepomuceno Saraiva, Julio de Barros, Spartano de Barros, Pedro Medina, Ramon Silva.

Interação social
O contato intenso e cotidiano entre as duas comunidades na faixa da fronteira levou a uma quantidade significativa de relações matrimoniais entre indivíduos dos dois países. Raras são as famílias que tanto ontem como hoje se conservem rigorosamente brasileiras ou uruguaias. Casamentos binacionais aconteceram desde os tempos da Cisplatina e continuam a acontecer.
Quanto ao proletariado rural da região fronteiriça, este sempre buscou trabalho onde melhores condições se oferecessem.  Enquanto persistiu a escravidão no Brasil, os próprios escravos transitaram pela linha da fronteira, conduzidos por seus senhores, muitos deles estabelecidos tanto no Brasil como no Uruguai. Foi o gaúcho livre e vago que, transitando de um lado a outro da linha divisória, tornou-se um agente vivo da interação entre as duas nacionalidades.

 

Interação cultural

No Brasil a linguagem coloquial dos brasileiros da fronteira é apontada como marcadamente espanholada. A aproximação política, social e econômica da região fronteiriça refletiu culturalmente. Identifica-se aqui o fenômeno do bilinguismo uma modalidade híbrida e caricata do portunhol.
Esta linguagem coloquial no Uruguai incorporou termos comprovadamente brasileiros, como quitandeira (quitandera), moleque (muleque), facão (facón) jeito (yeito). Inegável também foi a contribuição dos negros escravos nas orações de benzeduras onde encontramos palavras de precedência brasileira.



[1] FRANCO, Sérgio da Costa. Panorama sócio-cultural da fronteira Brasil-Uruguai. Verso e reverso. Porto Alegre: ano VI, n. 11, julho-dezembro, 1992, p. 29-42.
[2] Professor de História.

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